9 de janeiro de 2019

O Juva fala, a Chimbica ouve

Ilustração: Alice Batella

Mas o Juva não entendia aquilo. Ele olhava para o seu ovo estrelado no meio do prato e não entendia aquilo. Onde é que estava o pinto?

— Esse ovo não tem pinto.

— Por quê?

— Alguns ovos vêm com pinto dentro, filho, outros ovos não vêm com pinto dentro.

— Por quê?

— Hum... Os ovos que não vêm com pinto dentro é porque o pinto não conseguiu nascer, e isso que você tem no prato é uma coisa que é quase um pinto, mas não é um pinto.

A questão vinha a toda a hora, porque o Juva adorava ovo frito com arroz, e sempre que olhava para a gema do ovo, que sua mãe, a seu pedido, deixava inteira e pronta para ser estourada com a colher, e o caldinho amarelo escorrer sobre o arroz; sempre que ele e a gema viviam esse momento, a questão voltava e ele olhava para a gema tentando entender por que é que aquela coisa amarela não era um pinto amarelo.

O sítio onde moravam era grande, e tinha até galinheiro. Naquele caos que era o galinheiro havia uma galinha velha que já não dava mais ovo. E um dia o Juva perguntou para o caseiro, que era grande e tinha um jeito estranho:

— O que é que vai acontecer com ela, Sartinho?

— Vai pra panela, menino Juva.

— Por que é que ela não pode continuar passeando, sem botar ovo?

— Galinha serve pra botar ovo, menino Juva. Ou ir pra panela...

— Hum... — o Juva desconfiava que servia para mais coisas, mas ficou quieto.

E um dia a tal galinha velha botou, e foram três ovos. A mãe do Juva achou que ali estava uma boa chance de passar à prática toda aquele blábláblá sobre o ovo e a galinha, e foi mostrar ao filho um novo mundo que tinham bem ali, à mão. Quando viram os três ovos da galinha velha na palhinha do galinheiro, fizeram uma festa. E o Juva, quando estava feliz, dava uns pulos desengonçados, e o Sartinho ao seu lado rindo um riso que o Juva nunca entendia...

— Escolhe um — disse a mãe.

— Escolher um pra quê?

— Pra tomar conta. Todo dia a gente vem aqui pra ver se ela ‘tá chocando direito esses ovos.

O Juva escolheu o ovo pequenino, meio amarelo, um com manchas vermelhas, e sua mãe ficou com os outros dois. E não havia dia em que não iam lá, depois do café. Atravessavam o sítio inteiro e entravam no galinheiro para encher o saco da galinha velha e vigiar seus ovos. O Juva já olhava para o seu de maneira diferente. O seu era diferente dos outros dois. Houve uma manhã em que apareceram bem cedo e não viram a galinha velha, só os três ovos. O Juva perguntou pro Sartinho onde é que estava a mãe do seu ovo, mas o Sartinho não respondeu, e riu aquele riso tão difícil de entender.

— Acho que ela foi pra panela — disse o Juva à mãe. — Mas por que é que ela foi pra panela se ela ‘tava botando ovo? Botou três e tudo...

— Ela ‘tava muito velhinha...

— Não era essa explicação que tinha antes...

Agora, mais do que nunca, o Juva tinha de cuidar daquele ovo, porque o pinto que nascesse dali não iria ter mãe nunca.


Uma semana antes de irem de férias para Cruz Alta, para a casa da tia — e lá em sua casa surgir a ideia da tal visita ao pai-de-santo que iria benzer o Juva —, nasceu finalmente, do seu ovo adotado e cheio de manchas vermelhas, a Chimbica, que ficou sendo, a partir dali, a galinha do Juva, que assistiu a tudo desde o início, e prendia, bastante nervoso, a mão da mãe na sua, enquanto viam o ovo rachar com umas bicadas que vinham de dentro e que iam atirando pedaços da casca para fora. Até que dele saiu, todo atrapalhado, o pinto, que o Sartinho, segurando o bichinho com aquelas mãos enormes dele, como duas tábuas, e olhando para o meio das suas perninhas, garantiu que era na verdade uma pintinha — “Isso é mulher, menino Juva” — e que quando crescesse seria então uma galinha. Havia começado a “fase pinto” da Chimbica, que o Juva aproveitou pouco, porque logo em seguida foram para Cruz Alta e ele teve de se separar dela.

Aquilo não foi fácil. A galinha tornou-se a sua alegria. Queria levá-la para a casa da tia, mas sua mãe garantiu que o Sartinho iria cuidar bem da Chimba. O Juva acabou não levando a Chimba, mas não falou de outra coisa a viagem inteira . Tudo era a Chimbica; tudo ele queria “contar” à Chimbica, e não via a hora de voltar para o sítio, para poder “contar” à Chimbica da sua viagem e do pai-de-santo que derramou guaraná na sua cabeça e cantou e dançou. E todos os presentes que ganhou não abriu na hora porque queria abrir na frente da Chimbica, porque a Chimbica era sua e ele era dela. E tudo isso era vivido bem lá dentro, no mais íntimo, porque ninguém de fora, além da mãe, da avó e da babá, entrava no Juva. Ele não era besta.

Depois da longa viagem e de passar o que ele passou com aquele pai-de-santo que derramou guaraná na sua cabeça e cantou e dançou, qual não foi a sua surpresa ao chegar ao sítio e ver a Chimbica já sem ser pinto e com cara e jeito de galinha? Estava diante da maior experiência que até então tinha vivido: ver uma coisa se transformar em outra, sendo ao mesmo tempo a mesma coisa e também uma coisa diferente. Pararam o carro, o Juva estendeu a mão à sua mãe e começou a puxá-la para o galinheiro. Estavam lá, quase como numa festa, outras galinhas, balançando as cabeças para cima e para baixo, e o Sartinho, que sempre aparecia de repente, como se aparecesse do nada, disse, bem atrás, com aquela voz:

— Lá, menino Juva. Lá...

Lá estava a Chimbica, andando de um lado para o outro, histérica, observando tudo, e mexendo a cabeça daquele jeito rápido que têm as galinhas e os passarinhos. O Juva foi para aquela confusão que é um galinheiro, pegou a Chimbica no colo...

— Galinha não se pega assim, menino Juva.

... mas ele pegou assim mesmo, e ela deve ter gostado, porque ficou bem quieta, com o pescoço levantado e olhando para ele com aqueles olhos arregalados que as galinhas têm: que olham sem olhar.

E a partir de então foi como se a Chimbica não saísse mais do seu colo. Nesse mesmo dia em que chegaram de Cruz Alta ela teve, lá pelas tantas, que ser retirada dos braços do moleque, porque era o fim da tarde e era a hora do banho — do banho do Juva; não da Chimbica.

— Mas ela vai ficar sem tomar banho?

O pai chamou a mãe num canto.

— Mulher...

— Fala...

— Vê lá o que é que tu foi inventar...

E a mãe, rindo da pergunta espantada e quase indignada do Juva sobre o banho da galinha, disse ao marido que deixasse o Juvinha viver aquela história, aquele afeto, ela disse mesmo assim — até o fim.

— Mas, querida, o guri não pode se apegar a uma galinha...

Mas ela ria menos da pergunta do garoto e mais da sua alegria de mãe, porque havia tempos ela não o via envolvido com mais alguém que não fosse ela, a avó e a babá. O que ninguém imaginava, nem a mãe, era que este “mais alguém” seria uma galinha. 

— E não tem problema ela ir pra minha cama sem tomar banho?

— Cama?! — e o pai levantou os olhos.

— Não vai sujar a cama de noite? É melhor ela tomar banho. Pode tomar banho comigo... Eu dou banho nela.

— Então, filho, você tem que saber que as galinhas não tomam banho, não gostam de água e só podem dormir no galinheiro — disse a mãe, porque o pai não disse nada, e suspirava. — Você de manhã pode ir lá pegar a Chimbica, mas vocês se separam de noite.

Não foi simples, mas ele afinal se convenceu, e passaram a fazer assim: ela era a sua amiga de quase todas as horas, e ele pegava a Chimbica logo que acordava e dava um beijo de boa-noite na cabeça da Chimbica no fim do dia, antes do seu banho, depois de terem passado o dia juntos — o Juva falando, a Chimbica ouvindo; o Juva mostrando o Mundo, a Chimbica olhando para ele com um ar de quem já conhecia o Mundo, ou pelo menos um Mundo. O Juva acabou convencido também de que não seria bom para ela brincar na piscina com ele nem andar a cavalo nem ficar com ele à mesa na hora da comida.

— Será que ela não quer comer o meu ovo frito com arroz porque acha que ‘tá comendo um filhinho?

E quando tinham de ir ao Rio de Janeiro, e iam uma vez por semana, por causa do médico, o Juva ia como iam as crianças, no banco de trás e olhando sempre para a mala. Foi um custo convencerem o pai de que a galinha iria com eles, e também foi um custo o Juvenal convencer o Juva de que seria melhor ela ir na mala de trás...

 — Para a galinha, Juva! É melhor para a galinha! — dizia o pai, de saco cheio daquela “chimbiquice” dos demônios. — Assim a galinha pas...

— O nome completo dela é Chimbica, pai...

— Hum... Assim a Chimbica passeia pela mala... Tu entendeu?

E o Juvenal estendia ali panos velhos e, irritado mas se contendo, atirava lá a Chimbica — que ficava no carro enquanto iam ao médico, claro, mas que não ficava no carro, claro, enquanto faziam a visita semanal à avó, para quem o Juva contava tudo e mostrava tudo, principalmente a Chimbica, que permanecia na área de serviço, dentro do tanque, à sua espera, comendo milho e cagando. E crescendo, e engordando. 

Cresciam o Juva e a Chimbica, juntos e cúmplices. Conheciam-se tanto que nem precisavam falar e já entendiam tudo um do outro. Seu pai não gostava de ver o guri agarrado a uma galinha e cochichando coisas na orelha de uma galinha. Ele não gostava de ver o guri afogado em muitos afetos, e dependendo de uma galinha para ser mais feliz. Mas o Juva estava afogado, sim, em muitos afetos, e dependendo, sim, de uma galinha para ser mais feliz. Ela o punha para rir, deixava-o solto e fazia-o sentir-se forte — forte porque ele, afinal, sabia cuidar dela melhor do que ninguém, e quem cuida é sempre forte.

Até que mudaram de médico, e não se sabe se foi por causa disso ou se por causa da alegria que lhe dava a Chimbica, mas o fato é que ia melhorando das dores, e já estava bem mais parecido com os meninos da sua idade. No melhor disso tudo, porém, a Chimbica desapareceu. Antes de uma dessas viagens ao Rio o Juva foi ao galinheiro para ver se a Chimbica já estava pronta e arrumada para partir. Tinha dito a ela, antes de dormir, que no dia seguinte iriam para o médico e depois para a casa da avó, e que ela estivesse pronta e arrumada logo cedo.

— A Chimbica? Cadê? — perguntou pro Sartinho, que estava passando e olhando pro nada, mas não ouviu, ou não quis ouvir.

O Juva entrou no galinheiro, chamou, berrou, mas ela não aparecia de canto algum. Ouviu os gritos do seu pai e teve de ir correndo pro carro, e já foi correndo com os olhos úmidos. Quando chegou perto estava o Sartinho apoiado na porta, com uma cara esquisita e conversando com o pai. E então olhou para o Juva meio que sem olhar, terminou de ouvir as ordens do patrão, abaixou a cabeça e se afastou.

A mãe do Juva, durante a viagem, fez de tudo para o animar, mas como é que ela podia animá-lo se ele também estava indo para o médico, uma coisa sempre ruim, e ainda mais sem a Chimbica? E todo aquele dia estranho, o médico, as injeções e a sua ansiedade, até mesmo a visita à avó, tudo deve ter deixado o Juva muito baqueado, porque dormiu toda a viagem de volta, e quando chegaram ao sítio, já anoitecendo, foi carregado direto para a cama. Quando acordou no dia seguinte a sensação era a de que não via a Chimbica há semanas.


Não viu a Chimbica nunca mais, embora tenha procurado por ela sem parar, e por dias e dias. Não se conformava. O pai tentou fazer com que ele se afeiçoasse ao Guru, um cão fila horroroso e com cara de bunda, mas o Guru, apesar de bem manso quando o Juva chegava perto, era brutalhão. A mãe providenciou uma outra história com um outro pinto, chegou a lhe dar nome, mas o Juva nem de tocar nele teve vontade. De vez em quando, no meio de alguma coisa, um almoço, um jantar, uma festa, ou no meio de coisa nenhuma, ele parava de repente, jogava os olhos para cima e sorria, lembrando-se de um lugar ali do sítio em que ainda não tinha procurado pela Chimbica, e saía correndo feito um doido, o coração acelerado e gritando por ela.


***

Ilustração:
Alice Batella

10 de dezembro de 2018

Bananadas e paçocas

Ilustração: Alice Batella

Sempre me orgulhei dos meus bons dias. Digo os bons dias em bom som, com bom humor, olhando nos olhos do recebedor. E são todos, ou quase todos. Começo a manhã pelos porteiros, continuo pelos motoristas de ônibus e pelas pessoas ao lado de quem me sento. Sigo pelos guardas da entrada do clube onde nado, e bom dia à salva-vidas da piscina, bom dia aos técnicos, aos funcionários do vestiário, aos motoristas da volta, às meninas do café onde bebo a minha média e como o meu pão de queijo, e a quem cruzar o meu caminho ao longo de toda a manhã. E das boas tardes passo às boas noites, e sigo na boa.

Até que ela apareceu numa manhã, sentada, afastada da esquina onde moro e num trecho esburacado da calçada. E lá se acocorou muito encolhida, abraçando os joelhos e tendo ao lado um potinho com bananadas e paçocas. Nunca comprei as bananadas e paçocas, evito olhá-la nos olhos, evito dar-lhe dinheiro e nunca lhe dei bom dia. Fico sem graça, um pouco por mim e mais por ela, ali, agachada, os joelhos abraçados como se já não pudesse abraçar coisa alguma, e por isso abraça os próprios joelhos.

Terá entre cinquenta e sessenta anos, negra, baixa, muitíssimo magra, e o espaço que ocupam aquele tronco mirrado e aqueles joelhos abraçados é mínimo. Por ela muitas pessoas vão e vêm, e é assim que vê o mundo, de baixo, à altura de canelas. Todos apressam o passo quando a veem de longe, e por ela passam com as cabeças viradas — um pouco para o lado para fugir do seu olhar magro. E eu faço o mesmo.

Quando lhe dou moedas e notinhas, o coração um pouco acelerado, rejeito as bananadas e paçocas. Eu deveria receber as bananadas e paçocas, que são, afinal, produto do seu comércio. Mas não. Por que tantos sentimentos envolvidos, e o meu coração um pouco acelerado?

Sinto culpa por mim, caminhando em direção a uma média com pão de queijo integral e podendo dar-lhe dinheiros que para mim pouco significam, já que estão sendo dados, e para ela muito significam, já que estão sendo recebidos. E sinto vergonha por ela, que poderia estar recebendo uma remuneração pelo seu comércio, não fosse eu, atrapalhado na minha culpa, negar-lhe esta dignidade. Se eu aceitasse as bananadas e paçocas, as moedas e notinhas não se transformariam em esmola e aquela mulher, que sorri e sempre me agradece, não seria para mim uma mendiga.

Nunca lhe dei bom dia, até o dia em que, me olhando magro e me oferecendo bananadas, quatro por dois reais, ela me deu, como sempre deu, o seu “bom dia”. E eu, coração e passo acelerados, devolvi o cumprimento com um “hoje não tenho trocado”, e segui em frente. Foi quando ouvi, atrás de mim e vindo de baixo, o seu recado: “Estou apenas lhe desejando bom dia, senhor...”.

Seu nome é Eliane, mora em Parada Angélica, “pra bem dentro de Caxias, senhor...”, e não faz as bananadas e paçocas; compra-as feitas e vende por quase o dobro. Escolheu o trecho esburacado da calçada, afastado da esquina, porque o moço do cabeleireiro ordenou que ela não ocupasse a esquina da rua porque senão afastaria as clientes do seu salão.

Antes de acabar este texto, e muitos outros textos, já lhe dei bom dia. Agora dou sempre o meu bom dia à Eliane, pago-lhe pelo seu trabalho, e venho colecionando bananadas e paçocas.

*

Ilustração:
Alice Batella

3 de dezembro de 2018

A pulga, o fantasma e a pedra


As eleições decidiram-se, e veio uma ressaca. Nunca fui um atento observador da política brasileira, mas sempre escrevi movido por algo em que acredito, e sempre sobre este algo: liberdade de expressão, amor e dignidade, e os seus opostos, claro, e sob um véu ficcional encontrei e pratico a minha revolução íntima. Neste período eleitoral segui escrevendo, desta vez com menos véus e mais concretude imediata, e de modo a tentar entender e comunicar a situação nada ordinária por que estamos passando. Senti-me motivado para me opor a uma candidatura danosa para (quase) todos, porque vivi desde o início a convicção de que não estava me posicionando apenas politicamente, mas filosófica e moralmente. Bolsonaro representa tudo o que vejo como errado. Através de amigos e amigos de amigos vi o que já veio e virá.

Ao mesmo tempo, e isto é muito meu, uma pulga sempre me incomodou: e se eu estiver errado, ou, ao menos, não estiver vendo que a minha convicção será sempre a convicção de quem está de um lado do campo; é a convicção de todas as pessoas que se julgam certas; é a convicção de quem acredita que, se existe uma razão a ser defendida, esta razão está do seu lado? Não será isto defender uma verdade que julgamos única? Não será isto não ver que se está agindo de forma parcial?

Um dia, num bar, a conversar com amigas e a ratificar o absurdo que é votar em Bolsonaro, olhei para uma mesa ao lado e vi um grupo de homens a rir. E pensei: e se eles estiverem falando do mesmo assunto, só que às avessas? E se estiverem também convictos de que só há uma única coisa a fazer: votar no Bolsonaro? E se estiverem certos de que, se existe uma razão, esta razão pertence a eles?

Esta pulga, no entanto, fui aos poucos vendo que não passava mesmo de uma pulguinha. Depois de assistir a tantos depoimentos e argumentos de eleitores e simpatizantes do Bolsonaro, percebi que muitos todos nutrem uma convicção apaixonada; a convicção de que estão prestes a eleger um messias, salvador, alguém possuidor, sim, de uma verdade localizada acima das inúmeras verdades que um mundo complexo como o nosso tem. E disse a mim mesmo: a verdade que defendo implica sempre o seu próprio questionamento em nome da complexidade da vida, ao passo que a verdade de muitos eleitores do Bolsonaro faz questão de ser uma verdade excludente, absoluta, que não admite duvidar de si própria. Nem mesmo esta simples dialética consegui encontrar no pensamento de algum eleitor do Bolsonaro: identificamos a nossa própria posição, a seguir avaliamos os aspectos da posição oposta, pesamos as duas, e depois, só depois, fazemos conscientemente a nossa escolha final, admitindo o que consideramos certo e afastando o que consideramos errado. Este caminho precisa ser feito.

No entanto, o que vi? Vi uma polarização inconcebível transcendendo a esfera política. Vi de um lado defensores de ideias muito básicas e óbvias (não violência, não preconceito, não racismo, não machismo, não ignorância), e do outro os que acreditam que tais ideias não são básicas e óbvias; não são relevantes para o tipo de sociedade que idealizam para o país. E então, depois de ouvir com atenção tudo o que a minha pulga relativizadora tinha a dizer, dispensei-a.

Afastada a pulga, pude me ocupar do que imaginei ser um fantasma defensor de sua legítima presença — imagem com que nomeio outro posicionamento diante desta eleição: a proposta de um voto em branco. Ouvi, ponderei e debati com pessoas muito inteligentes, sensatas e dignas, e estas pessoas expuseram o seu raciocínio: o de que Bolsonaro e o PT engravidaram um do outro, e são fortes na medida da força um do outro, e por isso se retroalimentam. Nomeio assim os dois campos adversários (um homem versus um partido) porque é exatamente disso que se trata: um homem vestido de “mito” e uma organização política ampla, desuniforme, importante mas pouco questionadora de si mesma e pouco dada a uma revisão crítica de sua história de erros e acertos. Não fosse o PT ter sido o que foi, disseram-me, e Bolsonaro não seria o que é. Isto não monta um raciocínio infalível, porém é plausível, sensato e faz sentido.

Não é infalível porque fenômenos semelhantes ao Bolsonaro têm força e oportunidade o suficiente para surgir em contextos sociais e históricos como o que estamos vivendo, e que se formam e transformam, a despeito do PT. A crise mundial, a superpopulação da parte miserável do planeta, a violência, as políticas externas das grandes potências, o terrorismo, o xenofobismo, fenômenos de imigração necessária e desesperada, a desmontagem do conceito tradicional de família, o incômodo e a indignação diante da complexidade das identidades de gênero, os movimentos neonazistas, o racismo estrutural de um mundo que há bem pouco tempo era dividido entre povos que chegavam e colonizavam e povos que eram “visitados” e colonizados.

Bolsonaro é o tipo de “mito” que, de vez em quando, visita o imaginário cidadão e alimenta utopias nefastas. O nascimento de messias como Bolsonaro já provou ser fenômeno recorrente na história dos povos. (Deveria colocar aspas em “história dos povos” para que nos lembremos de que o planeta também abriga povos que estão fora, ou tentam estar, de um sistema globalizado; povos isolados e nunca visitados por qualquer etnografia; tribos indígenas desconhecidas, também no Brasil; seres humanos habitantes de outro espaço e outro tempo, não fazendo ideia da existência de um mundo tal como o concebemos.)

Mas entendo a opção pelo voto em branco, e vejo-a como absolutamente legítima. Votar em branco é agir dentro da democracia, uma vez que a democracia inclui a liberdade de não optar. O que a democracia não admite é a proibição de optar. O problema, no específico caso de nossas últimas eleições, é que a democracia foi várias vezes posta em questão, a julgar pelas palavras e pelas “pistas” que a campanha eleitoral do Bolsonaro vomitou sobre o país. E, neste caso — apenas neste específico caso —, votar em branco poderá ter sido um tiro no pé; poderá ter sido correr o risco de se perder a importante e legítima liberdade para se votar em branco. Numa eleição como outra qualquer estão em jogo propostas políticas que nem pensam em colocar em xeque a própria ideia de eleição. Mas esta não foi uma eleição como outra qualquer. Esta foi uma eleição de que participou um político chamado Jair Bolsonaro.

Dispensada a pulga e debatido o fantasma, percebi que agora, passadas as eleições e ainda em ressaca, se já não tenho a minha pulga relativizadora nem o meu fantasma a dizer legitimamente: “Estou aqui, também podes votar em mim...”, ganhei, por outro lado, uma pedra bem no meio do meu caminho.

Esta pedra são as pessoas com as quais convivi, conversei ou apenas observei pelas redes sociais — pessoas que votaram em Bolsonaro com paixão, unhas e dentes porque viram ali (e veem) uma verdade única, em nome da qual valores caros a mim, fundamentais para o que acredito ser uma vida digna, podem “tranquilamente” ser sacrificados em prol de uma “causa maior” com propósitos “saneadores”, “purificadores” e “salvadores”. (Eu coloquei aspas, mas essas pessoas não colocam aspas nestas palavras — que significam, para elas, exatamente isto e nada mais.)

Não seriam, no entanto, pedra no meio do caminho se não fossem estas pessoas amigas e familiares. Mas são. Umas e outras me disseram algo como: “Nossa amizade é maior que nossas escolhas político-eleitorais”. Isto é obviamente óbvio, não pedissem essas escolhas um complemento diferente. Não são para mim escolhas “político-eleitorais”; são, de certeza, filosóficas e morais. Esta minha certeza, no entanto, não resolve nada; a pedra continua lá, no meio do caminho.

Nossos caminhos não são pouco frequentados; não são ermos. São caminhos cheios de gente passando e correndo, que vem e vai, gente com quem cruzamos um sem número de vezes — e sempre suados e atrasados, claro, porque a vida é árdua.

Deparar com uma pedra no meio do caminho não nos vai impedir a passagem, mas vai obrigar sempre a um desvio — contornar a pedra pelo acostamento. Não sei como lidar com isso. Minha tendência é manter o afeto vivo. Mas nem todo afeto é de ferro. Há cristais que acabarão — se já não estão — rachados. Outros, então, nem se fala. Outros quero crer serem mais duros que a pedra. Não sei. E não saber, neste caso, pode ser uma qualidade. O tempo dirá.

E termino com uma imagem bem corriqueira, e não à toa, porque, afinal, é da vida de todos os dias que estou a falar; do cotidiano de ir comprar o pão e beber o café na esquina e encontrar gente. Viveremos, é provável, aquela incômoda, constrangedora ou no mínimo engraçada situação de pararmos antes de um caminho estreito, ao lado do qual há tapumes de obra, ou buracos, e outra pessoa vir na direção oposta. E estacamos um diante do outro, balançando-nos de um lado para o outro, tentando ceder a vez ao outro ao mesmo tempo em que o outro também tenta ceder-nos a vez, e ninguém consegue se decidir para que banda avançar. E ficamos assim. E ninguém anda.

A dificuldade, é claro, fica bem maior quando, oscilando de um lado para o outro, qual pêndulos em movimento casado, fugimos do olhar da pessoa à nossa frente, que, por sua vez, também olha para baixo. Se não reconectarmos esse olhar, ninguém avança — e a pedra continua pedra. Em cima da pedra, é claro, sempre pode estar, em repouso meditativo, uma pulguinha relativizadora. Ou talvez não. Não sei. Talvez a pulguinha se dê conta de que não é hora para relativizações.

* * *

5 de outubro de 2018

O candidato do A.M.O.R.

Saul Steinberg

— O senhor é o candidato do “Amor”. Vamos fazer aqui algumas perguntas. Pedimos que o senhor seja breve nas respostas. Nosso tempo é limitado.

— Claro. Apenas uma correção, menina. Sou candidato do “A”, “Ême”, “Ó”, “Érre”. É assim que se fala. “Atitude, Merecimento, Ordem e Respeito” 

— O senhor me desculpe. Bom, vamos à primeira pergunta. O que o senhor pensa do ensino básico hoje no país?

— Ensino básico... A questão é a educação dos jovens adolescentes e das criancinhas. Nem vou entrar nessa conversa de gênero aqui. A imprensa vai distorcer. A imprensa foi uma descoberta maravilhosa, mas às vezes faz mais mal do que bem. Concordo com a liberdade de expressão, mas pergunto: quantos crimes já se cometeram em nome da liberdade? Será que vale a pena tanta liberdade? Mas isso é outro plano de ação que eu tenho...

— A pergunta, senhor candidato...

— Claro. Bom, sou um homem naturalista, ou seja, uso a natureza, e na natureza a gente tem macho e fêmea. Ponto pacífico. Leão e leoa. Sapo e rã, por exemplo. É simples. Agora, o que não é natural é o sujeito dizer que nasceu num corpo errado, que vive num mundo de sexo de fluidez. Essa coisa de ideologia de gênero, metamorfose... As pessoas acham que eu não sou instruído. Quem inventou a metamorfose foi o poeta Ovídio. Mal sabia ele no que ia dar... Homem e mulher são indivíduos de sexo oposto. Ponto pacífico. Agora, homossexualismo sempre teve. Todos têm direito ao homossexualismo. Não sou nem preconceituoso nem ideológico. Sou um liberal.

— Já que tocou nesse assunto... O senhor tem algum projeto de combate à homofobia?

— Homofobia... Minha questão, como eu disse, são a educação dos jovens adolescentes e das criancinhas. O mundo adulto é duro; a pessoa tem que ser firme como uma rocha. Agora, “debater questões” com os jovens adolescentes e as criancinhas é outra coisa. Os jovens adolescentes e as criancinhas devem possuir uma educação normal, e depois de adulto se tencionarem ser homossexualistas, ponto pacífico. Na escola, não! Lugar de escola é matemática, português, geografia, estudo de moral e cívica. Essas delineações embasam o meu plano de ação “A.D.I.A. — Ação de Desideologização da Infância e da Adolescência”, nome sugerido pela minha equipe. 

— E o senhor, na esfera privada, como se posiciona em relação a isso? Poderia dizer?

— Esfera privada... Na esfera privada cada sujeito tem a sua individualidade. Família pra mim é família. Meu pai sempre dizia que na mesa não se conversa dois temas: sobre religião nem política, mas nesse ponto eu desobedeci meu pai... (risos) Mas atenção! Estou falando de religião de verdade, e não budismo, essa falsa religião da Índia... Mas retornando aos finalmentes... Minha vida é um livro aberto. Agora, se desde cedo eu tivesse deixado esse debate dentro de casa, esse debate de homem que não é homem e mulher que não é mulher... Ôpa! Não deixei, e por isso esse assunto não proliferou. Menina, sou do tipo paizão, e nesse ponto eu obedeci meu pai, e até demais! (risos) As pessoas acham que eu sou preconceituoso. Eu não sou. Mas sou antiquário. Isso sou. Sou do tempo em que a gente dizia: “Primeiro as damas!”, e elas olhavam pra baixo e sorriam.

— O senhor não respondeu... O projeto de combate à homofobia...

— Homofobia... Menina, como pai, aí não é questão de “projeto”; é questão de bom senso. Mas como homem público tenho que tolerar, não é?

— Tolerar a homofobia?!

— É. Quer dizer, não... Tolerar o homossexualismo. O país é vasto, e a gente tem que saber lidar. Ponto pacífico. Até índio trans deve ter... (risos) Isso foi uma piada, claro...

— O senhor costuma ser acusado de fazer piadas politicamente incorretas...

— Nem fazer humor a gente pode hoje, porque começa aquela história de não ser politicamente correto! Sempre fui politicamente correto! Nunca fui processado, nunca roubei, nunca apliquei dinheiro público. As pessoas misturam o joio do trigo... A gente não faz piada de português? Que eu saiba não tem nenhum português processando gente que faz piada de português. Piada com judeu, argentino, bicha... Um povo feliz não vive sem piada, gente! Outro plano de ação meu é rigorosamente esse, recuperar o bom humor do cidadão de bem. O plano de ação “H.A.H.A. — Humorização Autorizada com Humor Amoroso”. A-mo-ro-so, viu?

— O senhor, em suas declarações públicas, costuma adotar posturas machistas... É o que...

— Eu não sou machista, menina! Mas nem piada com mulher a gente pode fazer mais? Eu recordo de quando a gente na família ria, minha mãe também..., dizendo: “Mulher no volante, perigo constante!”. Bom, pra provar que quando eu digo isso é apenas uma piada, eu afirmo publicamente: “Eu no volante, perigo constante!”. (risos) Minha mulher, por incrível que pareça, até dirige melhor que eu... Ponto pacífico.

— Como o senhor vê a mulher, hoje, no mercado de trabalho?

— Hoje, no século XX, a gente esbarra com mulheres trabalhando, e muito bem, diga-se de passagem! Mas, segundo afirmei, menina, eu sou um naturalista, me embaso pela natureza, e o fato é que a mulher, nessa perspectiva teórica, é um animal procriador: procria as crias, enquanto o macho sai pra caçar o alimento, e, fazendo um paralelismo com a raça humana, o macho sai pra trabalhar, ou seja, trazer o salário. Hoje o mundo é outro, claro! Estamos em pleno século XX! A gente até vê pai cuidando de filho homem em casa... Mas eu sou a favor da licença paternidade, sim. Filho tem que que virar homem com pai em cima, pra dar o arrocho necessário. Se eu não tivesse feito licença paternidade, nem sei... Mas isso é outro assunto.

— Mas...

— Peraí. Voltando às vacas gordas... (risos) A mulher no mercado de trabalho fortaleceu esse mercado, mas teve um custo de objetividade. O homem é mais objetivo que a mulher, que é mais subjetiva que o homem. Isso é o naturalismo. Toda pessoa, claro, tem que ter a sua subjetividade... E o mundo tem que equilibrar objetividade com subjetividade. Mas atenção! Não em todas as esferas! Controlador de voo, por exemplo... Vai ver quantas mulheres é controladora de voo... Tem que ter bolas. Às vezes é bom usar as palavras certas... Cirurgião... Tem que ter coração duro e sangue frio... Menina, você entregaria seu filho pruma cirurgiã mulher? Pela sua cara, não... Pra outras profissões é diferente. Assistente social, trabalho voluntarístico, pediatria, psicologia do Freud... Essas ações estão no meu “P.A.U.”.

— “Pau”?!

— “Pê”, “A”, “U”: “Plano do Amanhã Ultravioleta”. O nome é bom, né? Violeta é uma cor feminina. Ultravioleta, então, é ultra-feminino. Percebeu a metáfora? Escolhi um nome lírico, poético, pra agradar as feministas e OS feministas. Pois é, há de tudo no mundo, até homem feminista... (risos) Trocando em miúdos: o “P.A.U.” explora a verdadeira natureza da mulher na sociedade de bem. Ponto pacífico.

— E quais são os seus projetos para a educação de nível superior?

— Educação?! Você está falando de educação ou de falta de educação? (risos) É piada... Antes de mais nada, vamos aclarar alguns conceitos teóricos. As pessoas são iguais, não são? Não é isso que todo o mundo faz alarde? Então, se são iguais, temos que dar igual oportunidades a todas elas, não é?

— Sim, mas...

— Como “mais”?! Elas não são iguais? Não tem uma declaração que diz isso? Branco, preto, amarelo, índio... Até índio é igual, não é? Agora, como é que eu vou favorecer umas e não outras na educação? Quando é pra estudar, todo mundo tem que ter as mesmas condições! Entrar numa faculdade... Por que é que eu vou separar umas vagas especiais pra umas pessoas, só porque elas são pretas? 

— Mas numa sociedade com uma história de escravidão, o contexto...

— Ah, eu sabia! Lá vem você falar de contexto... Essa expressão virou moda... Agora tudo é contexto... “Contexto social”... Isso não passa de uma frase feita, um clichê cinematográfico... O contexto social é o mesmo pra todo mundo! Todo mundo está dentro do contexto social. Todo mundo é cidadão! Não é o que todo mundo quer? É cidadão até mesmo aquele indivíduo que não tem carteira de identidade nem certificado de reservista, não é? Até bandido hoje é cidadão... Mas isso é outro assunto... Eu tenho planos de ação pra isso.

— Quais?

— Deixa eu terminar. A gente é um país de latinos americanos. Aqui ninguém é branco como é na Europa, não é? Aqui existe a prática da mestiçagem. Eu não sou branco, você não é branca, apesar desse rostinho lindo... Se eu não sou branco, eu posso ficar dizendo que sou preto só pra receber vaga especial em faculdade?

— O senhor está simplificando uma questão complexa...

— Agora também tudo é “questão complexa”... Se eu dou esse tipo de favoritismo, então eu não estou sendo igualitarista. Um sujeito que estuda duro, ele vai entrar numa faculdade porque deu duro, não é? Um entra porque mereceu; outro entra porque é preto? Ponto pacífico que não.

— Mas candidato...

— Deixa eu terminar. Resolver essa simples questão é parte do plano de ação “A.M.E.M. — Ação de Meritocratização Educacional para a Maioridade”, que faz parte de uma ação maior, que é a “A.I.5 — Ação de Igualitarização dos 5”, uma variante do “P.D.S. — Plano de Discernimento Social”.

— Cinco?

— Eu sabia que você ia me perguntar sobre isso. São os cinco pilares da Raça Humana. Tem até sigla, abreviatura... “F.E.D.E.R. — Família, Educação, Dinheiro, Estado e Religião”. Se uma sociedade tem esses cinco elementos equilibrados numa igualdade para todos os homens de bem, de bem e de bens... (risos), aí tudo funciona a pleno vapor! Menina, aprende isso: a sociedade é uma orquestra, cada um faz a sua parte, sob a regência de um único regente. É simples.

— O senhor poderia explicar melhor?

— Óbvio! Se todos os homens, e mulheres também, claro..., viver como se fôssemos uma grande família nacional, com uma educação harmônica e homogênea, todos com dinheiro na carteira, todos sobre a proteção de um Estado-Pai e dirigidos por uma única e verdadeira religião, a orquestra não desafina! Ponto pacífico.

— Bom, e quais outros projetos o senhor colocará em prática?

— O mais gratificante é o plano de ação do “C.Ú. — Cidadanismo Único”. Primeiramente, fazer com que todas as pessoas de bem sejam cidadãos, ou seja, tenha os mesmos deveres. Mas não só. Índio, por exemplo. Essa época de índio já passou. Antes aqui havia só índio, muito justo; eles habitavam de favor, mas os tempos são outros! O índio hoje tem que ser o cidadão de bem. Tem direitos? Tem. Mas tem deveres de imposto também. Índio tem certificado de reserva? Tem carteira de identidade? Isso eu não sei, vou ver com o pessoal da minha equipe. Se não tiver vai ter que ter. Ponto pacífico.

— Os indígenas são cadastrados pelo Registro Administrativo de Nascimento de Indígena, RANI.

— Raoni?! Raoni não é o nome daquele cacique lá?

— RA-NI, senhor.

— Bom, dá no mesmo... Como eu dizia, o país serve para todos. Não dá mais pra ficar separando terra de índio e terra de branco, quer dizer, de branco, preto, amarelo, tudo isso aí. O país precisa crescer. Essas áreas de reserva florestal, isso é área rica, que devem ser aproveitadas pro crescimento econômico, madeira, indústria e, claro, pecuária, pra alimentar as pessoas. Tem uns estudos sobre isso. Não faz sentido uma ruma de gente faminta andando pra lá e pra cá em área de reserva ambiental, de Partido Verde... A não ser que sejam vegetarianos... (risos)

— Combater a miséria e preservar áreas indígenas não são projetos excludentes...

— Lá vem você com teoria... A prática, aprenda isso, menina, é sempre superior à teoria. Isso é um conceito teórico da filosofia. Grécia antiga. Eu tenciono colocar esses índios pra trabalhar, e não ficar balançando em rede. Indolência é uma característica dos países quentes, mas tem que mudar isso... Eu vejo índio na capital!... Vejo índio servindo mesa, indo ao cinema!... Nenhum deles morreu por participar da sociedade branca, digo, branca, preta, amarela e mestiça. Vai perguntar pro índio se ele não quer ser trabalhador... O trabalhador é por natureza um ser honesto, desde que não se organize em grupos, claro... 

— O senhor é contra a organização sindical?

— Você está misturando os alhos dos bugalhos... Haviam uns estudos de sociologia sobre isso, que provam que no fundo nenhum índio quer ser mais índio nem falar língua rudimentar de índio... Isso faz parte do plano de ação “A.E.I.O.U. — Alfabetização Educacional do Indígena Organizado e Unificado”. Desflorestamento ambiental e introdução do índio na capital é o novo princípio da ordem político-econômica.

— O senhor tem mais projetos?

— O que não falta aqui é plano de ação. Eu tenho um plano de ação geral, e ele é bem concreto. Aprende isso: ideais são coisas inúteis; ações é que são efetivas. O país precisa de investimento, e não de classe artística. Artista ganha rios de dinheiro e atira tudo pela janela da inspiração. Vai ver se trabalhador honesto pode se dar ao luxo de ser artista...

— Perguntei se o senhor tem mais projetos...

— Desculpa, eu quando falo de arte me animo... Tenho um plano de ação fundamental: desburocratização! Um governante quer fazer alguma coisa, e tem que propor projeto de lei, e o projeto tem que tramitar, e tem que ser aprovado aqui e ali... E enquanto isso o país afunda. Tem que agilizar! O pesadelo da burocracia todo governante padece de. Ele não foi eleito? Não teve maioria do povo? Então é um governante com legitimidade pra governar, e não ficar fazendo projeto de lei pra parlamentar aprovar... O presidente faz a lei, e a lei é pra ser cumprida de forma rápida e eficiente. Ponto pacífico. Não é pra ser “debatida”. Tempo é dinheiro. Bom, isso está no plano de ação “P.S.L. — Projeto da Soberania Legítima”, que é a minha menina dos olhos, o meu xodó...

— O senhor se importaria de no próximo bloco responder a um pingue-pongue de perguntas? Com respostas rápidas?

— Tipo “toma lá; dá cá”? Que nem na política hoje? (risos) Sem problema algum. Estamos aqui pra isso.

— Obrigada. Estamos aqui numa entrevista exclusiva com o candidato do “Amor”. E vamos agora pros nossos comerciais. Fique com a gente. Obrigada.

— Desculpa, é “A”, “Ême”, “Ó”, “Érre”: “Atitude, Merecimento, Ordem...

— Obrigada, candidato.

*

Inspirações e paráfrases:

G. FLAUBERT. Dicionário das ideias feitas. Trad. João da Fonseca Amaral. Ilustrações Martim Avilez. Lisboa: Editorial Estampa, 1974.

Imagem:

Saul Steinberg
New Yorker March 12th, 1960 Canvas Print, em: Fine Art America.


25 de setembro de 2018

Fantasticamente realista


ilustração @karinakuschnir

Numa de suas aulas na Universidade de Berkeley, em 1980, Julio Cortázar fala do dia em que ficou muito aporrinhado porque emprestou a um amigo um romance pouco conhecido de Júlio Verne, O segredo de Wilhelm Storitz, e o amigo devolveu dizendo que não havia conseguido ler; achou fantástico demais... Para Cortázar aquilo não era razão para o amigo não ler a coisa. E foi então que se deu conta: seria sempre um escritor realista — e o seu realismo, mais realista que o realismo dos escritores chamados realistas. “... os realistas como meu amigo”, disse ele, “aceitavam a realidade até certo ponto, e a partir daí tudo era fantástico. Eu aceitava uma realidade maior, mais elástica, mais expandida, em que tudo cabia.”

Esta conclusão moldou-o como escritor, especialmente de contos. Sua intensa familiaridade com o elemento fantástico revelou-se como uma forma de realidade que poderia surgir em qualquer momento, com qualquer livro e dentro de qualquer história de vida. O fantástico mora no singelo gesto de uma moça calçar as suas meias às dez da noite, antes de se deitar para ler um livro; na forma como se varre uma rua; na maneira de se acariciar um gato. 

Nessas aulas em Berkeley, depois de analisar o chamado conto fantástico — e ele o entende e, à sua maneira, domina —, Cortázar dá o pulo literário para o que se entende por conto realista, e tenta defini-lo em sua complexa relação com a não menos complexa realidade. A filosofia, desde os seus primórdios e até hoje, ocupa-se da realidade. Aceitamos o que os nossos sentidos apreendem e nos mostram, mas também sabemos do falhanço destes sentidos — como é fácil, com a ajuda de jogos, exercícios e estratégias, iludirmo-nos na captação do real que nos envolve. “... no entanto”, diz ele, “como é preciso viver, como não podemos ficar parados numa mera problemática, acabamos aceitando a realidade tal como ela se apresenta para nós.”

O conto realista, para o inventor dos Cronópios, é menos fácil de compreender. De início, e dada a sua natureza realística, esta forma de contar denuncia uma situação de dor e indignidade, aponta com o dedo a ferida de uma condição humana degradada por forças negativas e autoritárias, e ainda aborda criticamente variadas patologias psicológicas e sociais. E o conto realista ganha, assim, algum tipo de função social. O autor, é claro, nem sempre tem consciência de sua denúncia — mas ela está lá, mesmo que de uma forma impalpável. O bom leitor, diante de um bom texto, saberá flagrá-la.

Cortázar, no entanto, vai por outra via. Tenta definir o conto realista como uma narrativa que insiste no tratamento do seu tema, no evento que pretende relatar ou em algum episódio da vida de tal ou tal personagem — e tudo isto é retirado da realidade a envolver o autor ou o leitor, quer a conheçam ou não. O perigo, para Cortázar, está em tal insistência permanecer circunscrita a esse recorte do real — o autor contentando-se em descrever algo que o instiga, comove ou choca, acreditando isto bastar para que o seu acontecimento mereça ser relatado. Se o escritor, no entanto, permanece parado em seu recorte, o conto morre quando a história chega à sua última linha.

Embora todo conto, dado que o real surge múltiplo e infinito, precise ser sempre este recorte, esta visada, esta recolha de algum quinhão de realidade, é preciso ir além. Se o texto consegue ir além da história contada, aventurando-se em algo mais — os meandros da psicologia dos personagens envolvidos, ou o insólito encravado no cotidiano —, chega então à condição de um grande conto realista. E Cortázar cita alguns, como os de Tchekhov, Quiroga e Maupassant; e eu, entrando na conversa, somo Bierce, Harvey, O’Hara e Somerset Maugham. Seus contos fixam-se de tal forma em nossa memória que se tornam, em qualquer tempo, inesquecíveis — sempre fáceis de se recontar e recontar.

“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo”, escreveu Walter Benjamin em seu ensaio “O narrador”. E dele me lembrei lendo esta aula do Cortázar: do nostálgico Benjamin e de suas considerações acerca das narrativas do romancista russo Nikolai Leskov (1831-1895) — para ele um grande narrador justamente porque consegue ir além daquilo que conta, e assim é porque não se mete a analisar ou a descer à profundidade rasa das explicações que tentam manter uma realidade de pé, “verificada” e “provada”.

O ensaio de Benjamin, no entanto, segue uma trilha diferente das aulas do Cortázar. Está a falar do ocaso das grandes narrativas baseadas numa tradição oral, do nascimento do romance como produto de consumo da burguesia europeia e do surgimento da imprensa e do livro. Está a falar do “perigo” que representa para as grandes narrativas épicas a gradual importância que vão ganhando a informação e o fato jornalístico — estes, sem a realidade, sem a sua explicação e a sua verificabilidade, não se sustentam.

As grandes narrativas baseadas na tradição oral, os contos fantásticos de forma mais óbvia e os contos realistas, tal como Cortázar os vê, devem pôr em funcionamento, “por trás da história, às vezes por baixo, às vezes lateralmente (...), todo um sistema de forças de que não há por que falar necessariamente, mas que explica o que sucede no conto; explica-nos de outra maneira que o relato mesmo, que a própria história, por baixo ou por cima”, segue Cortázar, “e lhe dá uma força que não tem a historia pura, simples”.

Nada disso, porém, forma uma engrenagem que se põe em simples movimento no instante em que se escreve. O escritor que se dispõe a saltar sobre o abismo da escrita, sobre o risco de se escrever para outras pessoas, sobre este dar a cara a tapa que é criar uma “coisa” que insistimos (e temos de insistir) em chamar de arte literária; este escritor precisa saber que dentro da “realidade” de sua arte há, e deve sempre haver, muitas outras realidades — belas, tristes, doentias e perigosas. E só então ele pega impulso e pula. 

*

Fontes:

BENJAMIN, Walter. “O narrador — considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 2012.

CORTÁZAR, Julio. Aulas de Literatura – Berkeley, 1980. Trad. Fabiana Camargo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.




10 de setembro de 2018

Aparício: eis a questão

                                                                                                                                                         ilustração @karinakuschnir

Aparício aparece ao início, logo no segundo parágrafo do capítulo um. Nasceu de uma canetada, e agora passa a existir. O aparecimento de Aparício deu-se num fim de tarde em que não havia nem sol nem chuva, mas apenas o crepúsculo. Aparício mora agora no romance de um sujeito que escreve, não vale a pena falar dele; não é de muita conversa. 

Aparício foi perfeitamente criado e já nasceu adulto. Além de todas as partes do corpo, íntegras, e nenhuma doença digna de registro, ainda ganhou uma personalidade, ganhando assim vontades, desejos, alegrias e frustrações. E já nasceu introspectivo, sempre suspeitando que, a bem da verdade, ele não nasceu, porque seres como ele não nascem; são criados. Aparício, além de introspectivo — e talvez por causa ou consequência de sua introspecção —, tem desde sempre uma pulga atrás da orelha, também suspeitando que a sua “pulga” é, por sua vez, uma criação do tal sujeito que escreve. Aparício, tal como a sua pulga, e tal como a sua “orelha”, atrás da qual a pulga passou a morar, é ficcional.

Tal condição deu à personalidade de Aparício um quê meio existencial, fazendo de Aparício um “ser” paradoxal. A dúvida e a questão de Aparício: ele existe? Ser um ser ficcional é uma coisa que lhe dá muita confusão na cabeça. Como pode ele, um ser, ser ficcional? Como pode existir um ser que não existe? Linha após linha esta angústia vai dando cabo de si e tomando conta de todo o seu ser ficcional.

Tentou algumas vezes interpelar o tal sujeito que o criou, mas o dito cujo estava sempre ocupado, a criar outras cenas e outros seres — que, também eles, passaram a existir, mesmo não existindo. E Aparício desistiu. Não seria com aquele sujeito ocupadíssimo que resolveria as suas angústias existenciais. E seguiu então a sua vida, página a página, como todo ser ficcional deve seguir...

Embora fosse ganhando cada vez mais convicção de que de fato não existia, agia como se existisse. É verdade que comia pouco e dormia quase nada. Chegou a comer pela primeira vez na vida, e mesmo assim muito mal, no capítulo nove (ou foi no dez?), durante um longo parágrafo, num jantar enfadonho, com outros seres ficcionais à mesa, também enfadonhos, com exceção de um rapaz. Dormir, só se lembra de ter dormido (cochilado) muitas páginas à frente, e num trem, onde o tal sujeito de pouca conversa o meteu para que ele se encontrasse com um rapaz (o tal do jantar), talvez criado apenas para aquele encontro. Ou não. Aparício até então não sabia de nada.

De resto, o que mais fazia era conviver, relacionar-se, indignar-se, frustrar-se, rejubilar-se — ocupar-se, enfim, e incansavelmente, com relações humanas, sobretudo as amorosas. Era o que na sua história ia acontecendo, e era como ele ia vivendo a sua vidinha — e sempre não fazendo a menor ideia do que lhe aconteceria algumas páginas ou mesmo algumas linhas à frente. Aparício ainda não sabe nem se é afinal o protagonista da história que está sendo contada pelo tal sujeito de pouca conversa, embora de muitas palavras, algumas ao vento...

Um belo dia, no meio de um parágrafo que descrevia uma tarde ensolarada, e justo na linha que narrava uma caminhada sua por um bosque, Aparício deu-se conta de que estava sendo observado por outra pessoa — esta de fato existente, ou seja, nada ficcional.

Aparício assustou-se, parou a sua caminhada e sentou-se num banquinho. Não imaginava que houvesse “por aí” ninguém além dele, dos malucos que o cercavam por todas aquelas linhas e páginas e do tal sujeito de pouca conversa, de quem já sabe que não obteria informação alguma sobre o paradoxo da sua (in)existência. Passado o susto, aproveitou o que talvez fosse a sua única oportunidade de entender a si mesmo e saber afinal se ele, que se sentia tão existente, de alguma forma (qual?) existia.

Quem o estava lendo era um senhor idoso, de óculos, um lápis na mão e um olhar cândido. Aparício pegou um travessão da mochila e falou:

— O senhor... O senhor aí que me observa... Posso pedir um minuto da sua atenção?

O velhinho, que, como é obvio, não tirava os olhos das linhas em que caminhava Aparício, e agora da linha em que Aparício se sentou, e principalmente do próprio Aparício, não levantou os olhos do livro, como seria de se esperar numa situação comum e ordinária, mas se inclinou ainda mais sobre a página, arrumou os óculos e sorriu.

— Obrigado — disse Aparício, sentindo-se, pela primeira vez na vida, realmente não tão só. — Posso me apresentar?

— Não precisa. Sei quem você é. É o Aparício.

— Mas como o senhor?... Claro, o senhor sabe o meu nome, mas eu não sei o seu.

— Pode me chamar de Antonio.

— Muito prazer, sr. Antonio. O senhor me perdoe a pergunta um tanto descabida: o senhor existe de fato, não é?

— Sim, sim. Inteiramente.

— Imaginei... É que estou desde sempre com uma questão existencial difícil de destrinchar: pode parecer maluquice, mas o fato é que não sei se existo. Às vezes penso que sim, quando sinto e sofro e choro e também me alegro, porém às vezes sinto que não, como se houvesse algo construído, controlado e controlável a guiar meus pensamentos e minhas ações, um projeto acabado, como se eu existisse apenas para corresponder a uma lógica qualquer... O senhor entende desses assuntos?

— Entendo, sim, Aparício, e muito. E isso é normal. Você, afinal, é uma personagem. E todas as personagens, pelo menos as chamadas complexas, que são reflexivas e contraditórias e profundas, e... redondas, como se diz em algumas teorias literárias, todas as personagens como você sentem essa angústia existencial.

— Sei... Bom, falar é fácil, e pouco resolve a coisa. E eu, ou melhor, a minha personagem, vai chegar a fazer análise?

— Não, mas o seu criador...

— O tal sujeito...

— Sim, o tal sujeito, que eu aliás conheço, já estivemos juntos num debate... Ele faz.

— Imaginei... Perguntei isso da análise porque conheci um jovem psicanalista, que apareceu no capítulo nove, ou dez, e depois num trem... Talvez ele pudesse me indicar alguém. Mas o senhor diz que não vai rolar análise nenhuma.

— Bom, Aparício, sem querer adiantar a coisa... Você ainda vai se encontrar com esse psicanalista em outros lugares, mas nunca como paciente. Vocês serão grandes amigos, depois vão se apaixonar, e depois vão se afastar.

— Puxa, sr. Antonio... Que banho de água fria...

— Pode me chamar de Antonio.

— OK, Antonio. Você sabe tanta coisa a meu respeito...

— Já li a sua história de vida três vezes, Aparício. Estou, inclusive, escrevendo um ensaio sobre você — disse Antonio, cândido.

— Nem sei o que dizer. Não me achava assim tão... ensaiável.

— Você é, Aparício. E eu diria mais: é instigante e, de certo modo, revolucionário. Permite muitas leituras.

— Estou vendo. Você já me leu três vezes...

— Estou falando de leitura no sentido de interpretação, Aparício... Mas tudo bem, você não precisa entender muito disso. A sua área é outra. Você é um médico, um clínico geral.

— Isso eu não preciso que você diga, Antonio! Eu sei muito bem quem eu sou.

— Ora, ora! Isso não deixa de ser um avanço aí na sua questão existencial...

— Antonio, eu dizer que sei quem eu sou é apenas uma maneira de dizer. De toda forma, admito: você me conhece mais do que eu a mim mesmo.

— Conheço. O seu criador abriu a sua mente para o leitor. Poderia não ter aberto se tivesse criado um Aparício mais simples, mais estereotipado... Mas ele optou por fazer de você uma personagem complexa, redonda, e deu a mim, ao leitor, as chaves da sua intimidade.

— Não sei se gosto disso... É invasivo.

— Você não tem opção. O fato é que o conheço, Aparício, bem melhor do que conheço todas as pessoas que me cercam.

— Mais do que conhece a sua mãe, ou o seu pai, ou a sua mulher? Nem sei se você é casado...

— Sou, sim. Conheço-o mais do que conheço as pessoas da minha família. Das pessoas, digamos, realmente reais, nós conhecemos a fisionomia, os gestos, alguns hábitos e alguns pensamentos, mas apenas alguns! E mesmo assim só aqueles que as pessoas permitem que nós conheçamos. As pessoas são misteriosas e inesperadas, Aparício.

— Mas eu afinal não sou redondo? Também me sinto mist...

— Nós, seres realmente reais, inventamos teorias e práticas que nos permitem chegar mais perto do nosso íntimo. A psicologia é uma delas, e a filosofia também. E, mesmo com essas ferramentas, o conhecimento que eu e os demais seres realmente reais temos uns dos outros surge fluido e impreciso. É muitas vezes decepcionante, e esse desconhecimento pode levar a situações catastróficas, e tem levado...

— Isso tudo, Antonio, acontece aí fora, é?

— Acontece... Mas, se não fosse assim, se não houvesse no mundo daqui de fora este mistério acerca do outro; se não houvesse uma certa privacidade, uma reserva mútua a proteger todos os seres realmente reais, a vida neste planeta seria um inferno, Aparício. É um preço alto não conhecermos de fato uns aos outros, mas se não fosse assim seria bem pior...

— Bom, como eu dizia, eu também me sinto misterioso e inesperado. Tenho até questões existenciais...

— Mas há uma diferença, Aparício. Os seres realmente reais são arbitrários, e a nossa vida está sujeita ao acaso. A sua, jamais. Você foi criado, elaborado e manufaturado nos mínimos detalhes, e para servir a um propósito estético, artístico.

— Ora, ora, também não é pra tanto...

— Desculpe se estou sendo pomposo... Mas conheço tudo sobre você. Posso nem conhecer tanto o seu corpo ou a maneira como se veste ou mesmo se usa fio dental, porém da sua personalidade eu conheço tudo, porque está tudo aí dentro, tudo o que me foi dado conhecer, claro... É aquilo que você mesmo disse sobre corresponder a uma lógica. Você, meu caro Aparício, o que faz é seguir uma lógica, a simples lógica da sua personagem.

— Simples lógica!... Então a minha suposta profundidade não passa de uma “simples lógica”, uma história pra boi dormir? Você disse que eu era profundo...

— E é, Aparício! A sua profundidade é tão profunda como a minha, mas a diferença está aqui: sobre a sua personalidade as páginas, nesta história, estão abertas. O seu criador, o tal sujeito, ele sabe tudo a seu respeito, mesmo que tenha decidido não escrever tudo a seu respeito. 

— Tudo bem, ele me inventou. OK, eu sei que “devo” a minha ”vida” a ele, mas não gosto dele...

— Isso, no fim das contas, é irrelevante. Talvez o relevante seja se ele gosta de você.

— Bom, estou fazendo o melhor que posso... E olha que já passei por cada uma, Antonio... No capítulo treze, por exemplo...

— Eu sei, Aparício, o que aconteceu lá... Mas, como eu já disse, aquele rapaz, mesmo tão belo e sensível, não foi concebido para ser o seu amor...

— Estou gostando dele cada vez mais...

— Mas vai deixar de gostar, desculpe adiantar o futuro, daqui a... deixe ver... tomei umas notas aqui neste caderno... Vai deixar de gostar daqui a dez capítulos.

— Tanto tempo assim? E até lá, o que é que eu faço?

— Vai vivendo esse amor.

— Hum.. Não sei se quero continuar com isso... Já sei que não vai dar em nada.

— Essa sua frase nem faz sentido, Aparício. Mas, ao mesmo tempo, é graças a essa frase que você é uma personagem complexa, redonda...

— Não quero mais ser redondo!

— Essa decisão não é sua... Aliás, é melhor se arrumar. Daqui a pouco você aparece.

— Quando?

— Daqui a dois capítulos.

— Saco...

— E vai ser num almoço de confraternização de antigos estudantes da faculdade de medicina de São Paulo.

— Almoço de confraternização?! Isso não se faz... E além do mais não tenho fome.

— Porque você, de fato, não precisa de comida, Aparício.

— Eu queria precisar.

— Eu também queria muita coisa...

— Bom, uma última perguntinha, Antonio. Pode ser?

— Só mais uma, porque eu preciso continuar a ler a sua vida.

— Hum... Nem sei se quero saber isso, mas vou perguntar mesmo assim.

— Diga.

— Com relação a essa história aqui...

— Diga, Aparício!

— Eu... morro no final?

— Você nunca morre, Aparício... É o máximo que posso adiantar. É muita informação para uma caminhada num bosque, numa tarde ensolarada... Boa sorte, rapaz!

— Mas...

*

Fonte:

Antonio CANDIDO. “A personagem do romance”. A personagem de ficção. Debates, Literatura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976, p. 51-80. (O texto está aqui.)